30 de abril de 2024
Comportamento

A RESISTÊNCIA DOS CHATOS

Cabeça de Medusa (1597) – Caravaggio – Galleria degli Uffizi, Florença


Quando publicou em
1962 seu mais famoso livro, Guilherme Figueiredo não podia saber de duas coisas.

Que viria a ser primeiro-irmão do último ditador militar e que sua obra teria sido mais completa se já existissem as redes sociais.

O Tratado Geral dos Chatos quase esgotou o assunto, tornando-se referência para quem queria tratar do tema, por mais de 60 anos.

É perfeito para classificar toda e qualquer chateação. Desde que seja analógica.

Para ser utilizado na análise dos que trocaram as galochas pelos gigabytes, adaptações são necessárias.

Vencem pelo cansaço, com a insubstituível tática do enchimento de sacos.

Os chatos digitais continuam facilmente identificáveis, mas a chatice virou característica física, incorporada ao fenótipo.

Em grupos restritos e encontros presenciais, se iluminam mais ainda.

Pela riqueza de detalhes, dos acessórios à mostra.

Uma marca ostensiva no bolso da camisa, uma caneta em seu interior, com estrela de seis pontas, qual iceberg bem visível, já são indeléveis indícios.

O corte do cabelo ou os desenhos da barba também podem revelar sinais exteriores que vêm de dentro. Do fundo da alma, de onde os neurocientistas arranjam tantos temas, igualmente maçantes.

Circulou nos grupos uma lista com os escolhidos por maîtres, garçons e donos de bares e restaurantes, como os fregueses, digamos, inesquecíveis.

E dispensáveis.

Como não houve contestações, a listagem deve ter sido criteriosamente elaborada e premiado os que realmente mereceram o honroso lugar no hall da fama.

Continuaram  com as mesmas performances mesmos nos tempos fugazes dos hábitos  compulsórios de distanciamento, entre as mesas dos botecos e bistrôs,  sem prejuízo dos aporrinhamentos nas reuniões familiares.

Na quarentena, com todo apoio da mídia tradicional, surgiu uma nova classe que desde as primeiras apresentações, já se mostrava merecedora de vaga no horário nobre.

Os neo-epidemiologistas de púlpitos, microfones e holofotes.

Resistiram até que os números fúnebres deixassem de impressionar e os picos de audiência não seguiam as curvas das sua previsões ainda mais catastróficas que a tragédia acontecida.

A eles, todos os méritos e honras pelo título coletivo, conferido de chatos da pandemia.

Não satisfeita com o prêmio, a mesma turma nem trocou o jaleco e continuou azucrinando.

Com prazos, algoritmos, mecanismos e percentuais de proteção das vacinas.

Devemos a eles a súbita partida do coronavírus, pelo que dizem, por não suportar mais tanta chateação.

Narciso (1599) – Caravaggio – Galeria Nacional de Arte Antiga, Palazzo Barberini, Roma, Itália.


(Este texto publicado, em 04/08/2020, também sofreu alterações genéticas)

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