2 de maio de 2024
ComportamentoMemória

BOCAS FECHADAS

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Barbeiros Ambulantes – Debret (1768–1848)


Alguns serviços entram em nossas vidas, tornam-se tão necessários e essenciais que deixam uma pergunta no ar:

Se havia vida inteligente antes deles.

Há sete anos, é fácil lembrar como se pedia um táxi.

Sabia-se onde era o  ponto mais próximo, o número do telefone na memória, não do smartphone, do  lóbulo pré-frontal do cérebro, e até o nome do  motorista de confiança.

O Über chegou revolucionando os costumes e dando oportunidades de trabalho a pessoas de profissões mais imprevisíveis.

No começo, as viagens com muitas conversas e as histórias de vida dos chauffers, interessavam.

Recontadas,  como uma revelação que a crise econômica perene não tinha indicador de intensidade mais preciso.

De um ex-gerente de banco, um professor ou um engenheiro fazendo trabalho duro, sem nenhum glamour, quem não iria querer saber?

Como os relatos não fugiam muito do script, o assunto repetitivo foi sendo  rebaixado à categoria dos chatos.

Nas corridas, o prestador do serviço e seu utente, constrangidos, não sabem mais se devem puxar conversa,com todas as informações disponíveis  na ponta do dedo, on-line, no celular.

Necessidade do uso de máscara, mapas, ruas de trânsito mais intenso (carregado, no vocabulário da moça do noticiário da TV), melhor rota, preço e até gorjeta.

Sem precisar dizer palavra alguma, a não ser o obrigado final. De parte dos  mais urbanos.

Ao se chamar o transportador autônomo, três perguntas já definem como será o deslocamento.

O freguês opta e avisa antes do embarque.                       

Com, sem, ou conversas apenas sobre o estritamente necessário.

Em algumas atividades, a capacidade de falar sobre qualquer e mais alguma coisa,  pelos cotovelos, viraram requisitos que despertavam  aptidões profissionais.                            

Dom de quem nasceu para o ofício, a loquacidade dos taxistas era vista também como confiável pesquisa de tendência eleitoral.

Um engraxate que não entendesse de tudo e mais um pouco, não lustraria muitos sapatos.

Se bem que o da calçada do Chase Manhattan Bank tenha deixado Mr. Rockfeller com um bug atrás da orelha, quando foi perguntado em que ações  deveria aplicar suas poupanças.                       

A conversa acabou em crack da bolsa e ditou a moda das botinas enlameadas.

O Dr. Getúlio de Oliveira Sales, vetusto professor de Patologia, homem de poucas palavras e imenso patrimônio cultural, escolheu seu barbeiro  não só pela habilidade com tesouras e navalhas, encontrou quem apertasse a tecla mudo tão logo  o freguês  aboletava-se na cadeira.

Naquele dia, por motivo superior, seria atendido por outro fígaro.

Para não decepcionar  o cliente, e a falta do titular não fosse notada, esmerou-se nos requififes.

Os cuidados com a colocação do avental e toda a proteção contra os irritantes pelos cortados, foram além do habitual e do tempo esperado.

Quando tudo estava pronto para o início da operação, antes da poda, a pergunta que seria a primeira e única de um abortado longo diálogo.

– Como o senhor deseja o corte?

-Calado.

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Loja de Barbeiros (1835) – Jean-Baptiste Debret – Pinacoteca do Estado de São Paulo

(Publicado em 16/03/20, o texto original sofreu alterações)

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