CACHORRO IMORTAL
Depois de uma longa, bem sucedida e lucrativa temporada, com o repertório exaurido, o circo precisava seguir viagem.
Bye, bye New Cross.
O roteiro já anunciava um novo e respeitável público.
Como o cantador Gonzaguinha, guardando as recordações das terras onde passava, andando pelos sertões e dos amigos que ia deixando.
Pela boa acolhida, e a dispensa de taxas e emolumentos, muito antes da Lei Rouanet, a excelentíssima senhora prefeita recebeu a visita de cortesia e despedida da família de acrobatas, músicos, palhaços, atores, dançarinos e bilheteiros do Grande Circo Copacabana.
Em agradecimento pela hospitalidade, um presente inusitado e inesperado, aceito sem muito entusiasmo, como mandava a etiqueta aprendida pela burgomestra, na Escola Doméstica.
A lembrancinha, o cachorro mais feio que já foi visto nas ribeiras do Curimataú,.
Retinto, sem pelugem alguma, a não ser uns poucos fios curtos na cocuruta e na ponta do rabo fino. De couro grosso, curtido ao sol.
Da artística família adestrada, dizia a crítica circense local, era o único sem dotes artísticos.
Reservado a papéis coadjuvantes, incapaz de pular por arcos em chamas e outras piruetas.
Em tempos de espetáculos politicamente incorretos, a cachorrada era chamada de africanos amestrados.
A origem ficou esta.
A ninguém foi dado o direito de escolher um nome de estimação.
A identidade estava no focinho e olhos tristes.
Chorão.
Virou cão de guarda e sombra da dona.
Sem lei modernosa, foi o primeiro da espécie a ter acesso livre ao prédio público mais imponente da cidade.
Sem crachá, foi assessor assíduo.
Como todo funcionário fantasma, não tinha birô mas o cantinho do gabinete estava conquistado. Aos pés da chefa.
Manteve a mesma lealdade na iniciativa privada.
Vigilante de loja.
Deitado, preguiçoso, na entrada, ao lado do capacho.
Nas horas vagas, solto e sem coleira que nunca usou, vagabundava, virava latas e namorava.
Deixou numerosa descendência, dispensando exames de DNA.
Somente depois da sua morte, seus segredos foram se revelando.
O pedigree era mexicano.
De uma raça milenar, considerada sagrada pelos povos mexicas e maias.
Aos xoloitzcuintle são atribuídos poderes de trazer boa sorte e prosperidade.
Sua fidelidade mais que canina, transcendia à vida terrena.
Quando os corpos morriam, as almas tinham um longo caminho a percorrer no mundo subterrâneo, até chegar ao dos mortos, Mictlan.
Os defuntos não conseguiam fazer a última viagem sozinhos. Precisavam dos companheiros de todas as horas, incluídos nos sacrifícios.
Eram as almas dos xolos que guiavam as dos donos através das veredas do além, até a apavorante travessia do rio da morte.
Ameaçada de extinção, a raça voltou a ser popular depois de representada pelo irresistível Dante, no filme dos Estúdios Disney, Viva – A Vida é uma Festa.
Quarenta anos depois, Chorão deixa o mundo dos mortos, para alguns instantes de lembranças.
E saudade.
***
(Este texto, original de 6/3/2021, é republicada hoje, em homenagem ao colega de blog, Cassiano Arruda Câmara, o aniversariante do dia, e em memória de sua mãe, Joanita, a proprietária de Chorão, falecida em 1992)
Sempre bem atenado aos
fatos. Bom domingo, provavelmente chuvoso.