28 de abril de 2024
Imprensa NacionalOpinião

Linchamento de Moise Kabagambe mostra que a civilização abandonou o Brasil

moise

Por Ruth de Aquino 

Assisti várias vezes ao vídeo repugnante do linchamento do congolês Moïse Kabagambe, de 24 anos. Precisava entender como três trabalhadores informais, sem carteira assinada e sem passagens pela polícia, garçons e cozinheiros de quiosque, tinham torturado e matado barbaramente um colega, sem chance de defesa.

Uma covardia com chutes, socos, enforcamento, corda e taco de madeira. Não parece crime premeditado.

Moïse era um companheiro de trabalho, de dificuldade na vida e até de cor escura de pele. É improvável que um juiz classifique o crime como racista. Ou como xenófobo. Moïse vivia no Rio de Janeiro desde os 14 anos e todos os seus amigos eram brasileiros, segundo a mãe. Era um cara legal, gentil, pobre e feliz, segundo parentes e conhecidos.

Nada torna esse crime menos violento, menos perverso. Ao contrário. Se Moïse foi cobrar diárias atrasadas ou pegar uma cerveja no cooler, o que aconteceu ali depois, na noite de 24 de janeiro, precisa ter punição exemplar. O Brasil é o campeão mundial em linchamentos, segundo pesquisa da USP. Talvez recordista mundial em impunidade. Os linchamentos ou castigos – também em favelas e comunidades, por tribunais do tráfico e da milícia – revelam a metástase em nosso tecido social, a omissão do Estado, a ausência de políticas públicas e a prepotência de justiceiros de todas as classes sociais.

Nenhum dos três agressores demonstrou um pingo de arrependimento pela brutalidade. É como se tivessem aplicado uma “correção” em Moïse que acabou mal. E isso assusta demais. Durante a sessão de tortura, chega um cliente e compra uma bebida com dinheiro no quiosque, sem se abalar. Os agressores estão presos e responderão por homicídio duplamente qualificado.

Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, 27 anos, é conhecido como Dezenove por não ter um dos dedos que, segundo ele, foi arrancado por uma companheira. Dá expediente diurno na praia e noturno numa hamburgueria, como caixa – ao todo, trabalha 13 horas por dia. Diz também ser preto, como a vítima, e nega racismo. Bateu para “extravasar raiva” porque Moïse “estava perturbando” e “infelizmente aconteceu a fatalidade de ele perder a vida”.

Brendon Alexandre Luz da Silva, o Totta, 21 anos, serve bebidas e comidas na areia e aluga guarda-sol e cadeira. Lutador de jiu-jitsu, imobilizou Moïse com uma chave de perna e o amarrou. Está “com a consciência tranquila” por ter “apenas” imobilizado Moïse para os outros espancarem. Diz que é “do candomblé” e não tem “o menor preconceito contra negros ou estrangeiros”.

Fábio Pirineus da Silva, o Belo, o mais velho, tem 41 anos, diz ser camelô. Vende caipirinhas na praia. Golpeou Moïse ao menos 14 vezes com um pedaço de madeira. Nos quiosques Tropicália e Biruta, na orla da Barra da Tijuca, os três agressores têm como ocupação principal “cardapear” – distribuir o cardápio. Ganham por comissão, R$ 10 por vendas feitas aos fregueses na praia. O que levou os três a espancar e matar Moïse?

Falei com a educadora Yvonne Bezerra de Mello, que chegou a sair temporariamente do Brasil para se proteger da ira das redes, por ajudar, em 2014, um adolescente nu, sangrando, com o pescoço preso a um poste com uma tranca de bicicleta. Como se fazia com os escravos no Pelourinho. Yvonne sentiu medo porque internautas diziam que ela é que deveria ser amarrada ao poste.

“A civilização abandonou o Brasil. É um processo de desconstrução do ser humano no coletivo, agindo como justiceiro com qualquer incômodo. O Brasil tem um linchamento por dia, a maioria por motivos fúteis como no caso de Moïse”. Yvonne criou o projeto social Uerê, na Favela da Maré, para crianças e jovens com bloqueios cognitivos e emocionais devido à exposição a traumas e violência. Ela já viu meninos na rua com os pés e mãos queimados na surdina à noite. Os discursos de ódio na sociedade estimulam essas práticas medievais, diz a educadora. 

Na última segunda-feira, Yvonne presenciou mais uma covardia: “Garotões sarados chutavam um morador de rua em Copacabana que dormia debaixo de um cobertor. Quando fui ajudá-lo, me disse: dona, apanho todo dia. Os agressores me xingaram e deram soco na lateral do meu carro.”

Yvonne não sabe, mas talvez tenha impedido que o rapaz tivesse o mesmo destino que Moïse.

O Brasil não pode continuar anestesiado pela crueldade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *