MATÉRIA BEM CONHECIDA
A residência médica permite aos recém-formados, a prática, sob tutela dos mais experientes, dos conhecimentos amealhados nos seis anos da faculdade.
De acesso restrito a poucos, cada vaga é tão disputada que quem a conquista muito mais que vitorioso, sente-se, simplesmente, o máximo.
Até começar o estágio.
Além da liturgia própria e rígido código de comportamento, uma hierarquia a ser respeitada.
Nas especialidades cirúrgicas, aumenta a disputa pra ver quem opera mais.
Tarefas distribuídas. As penosas e menos importantes, reservadas aos mais modernos.
Cirurgia completa, de pele-a-pele só para os veteranos.
Aquele R1 (residente calouro), o burro de carga do serviço, reclamava pelos quatro cantos, as poucas oportunidades que tinha de desenvolver suas habilidades.
Quando escalado para o centro cirúrgico era para instrumentar ou então como segundo auxiliar.
Cansou de dar pontos na pele, a maior responsabilidade a ele atribuída.
Já na enfermaria, sobrava pra ele, todo o serviço. Prescrições, evoluções e a entediante burocracia de guias, autorizações e uma gaveta cheia de carimbos.
Além do encargo de fazer os curativos – tarefa que considerava ser da enfermagem – e descrevê-los em minúcias nas visitas da equipe à beira do leito.
Um certo paciente não vinha evoluindo bem.
Curativo sempre sujo, tendo de ser trocado com frequência.
O chefe, resistente em admitir insucessos nas suas intervenções, afirmou que toda aquela secreção escura e mal cheirosa era apenas serosidade passageira.
Coisa normal que logo o tempo, senhor da natureza, resolveria.
Foi aí que o mais jejuno do grupo criou coragem, discordou da autoridade máxima e fez seu próprio diagnóstico.
Para ele, o paciente havia desenvolvido uma fistula intestinal que drenava, cada vez mais, fezes.
E encerrou o caso com uma observação incontestável:
–Isto é merda. E merda eu conheço bem.
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(Esta estória contada em 14/05/19, volta ao TL para lembrar que a inundação de novos cursos médicos só será controlada pelas residências em serviços credenciados pelo Conselho Federal de Medicina)