MEDICINA EM DESENCANTO
Toda força aplicada a um corpo é devolvida em igual intensidade.
O princípio da física virou lei nunca revogada.
E mais uma maçã na cesta do Seu Isaac Newton.
Antes que aparecessem os primeiros mestres e doutores em jornalismo, não era preciso ter pontuado 1000 no ENEM, para entrar numa redação.
Copidesques davam jeito às mal traçadas laudas dos focas.
Qualquer erro mais cabeludo, o pato do linotipista levava o chumbo.
Depois que inventaram as colunas e páginas de opinião, o movimento corporativista foi se refugiar nas assessorias de imprensa e dedos diversos começaram a maltratar as velhas remingtons e olivettis.
O espaço antes ocupado por advogados mais amostrados, passou a ser frequentado também por outros doutores boquirrotos.
Os médicos logo perceberam que, fugindo um pouco dos assuntos mórbidos , mantendo o raciocínio clínico e seguindo princípios da semiologia e terapêutica, poderiam transformar histórias de sofrimento e evoluções de cura, em artigos de jornais.
E foram brotando poetas, cronistas, contistas, romancistas e memorialistas. De aventais e cabelos brancos, esperando a hora e o tempo de pendurar o estetoscópio chegar, em noites de autógrafos.
Nem de longe ameaçado pela nova concorrência, quem percebeu a usurpação foi Millôr Fernandes (1923-2012).
E quem primeiro reagiu:
– São tantos os médicos virando escritores, que já sei o que vou ser quando me aposentar:
Médico.
Ginecologista.
A sátira do mestre das letras e de todas as artes impressas, emergiu, na maré de tormentas, surfando as ondas pandêmicas e arrebentando outros desvios de função.
Nas redes sociais, a preponderante participação de esculápios em discussões de temática jurídica, antes exclusiva aos causídicos e digital influencers, há quem diga, foi exagerada.
Os nosocômios ocupados exclusivamente pelos profissionais da linha de frente e a nouvelle vague dos teleatendimentos, levam os esculápios a prescrever em podcasts, viver de mesa redonda, pulando de webinar em webinar.
Uma vingança maligna não separou o Jório de Seu Trigo.
Jornalistas em disponibilidade, cientistas sociais desocupados, professores no lockdown, estatísticos de catástrofes, analistas de gráficos de barras e colunas, e pizzaiolos pulularam, se reproduziram e tornaram a blogosfera, quase inóspita e irrespirável.
Foram deles, ouvidos os comitês científicos, diretrizes e protocolos acatados e seguidos fiel e obedientemente por pacientes e seus cuidadores.
E os médicos, como ficaram depois que a pandemia amansou?
Aqueles charlatões que só sabiam passar remédio pra piolho, agora lutam para sobreviver às novas batalhas publicitárias, nos 30 segundos do Instagram e do TikTok.
(Atualização de texto publicado em 30/03/2021)