1 de maio de 2024
Memória

MEU DIÁRIO INÉDITO

A Morte de Marat (1793) – Jaques-Louis Davi – Museu Real de Belas Artes da Bélgica, Bruxelas


No período probatório do curso para aprendizes de cronistas, a necessidade do isolamento social exigia um plano estratégico de sobrevivência na blogosfera.

Sem guias nem manuais; sem  coaches nem mentores.

A memória mostrando sinais de desgaste.

A incurável incapacidade de lembrar datas, localizar lugares e reter fisionomias eram os pontos fracos, vulneráveis aos ventos de proa, desânimo e prenúncio inevitável de desistência à vista.

Livre de todos os outros compromissos, o tempo era o único aliado.

Se pudesse resistir às más companhias do ócio e da compulsiva obsessão por notícias dos avanços da peste devastadora.

Ainda havia  uma possibilidade de honrosa saída à francesa.

A suspensão das atividades enquanto durasse a pandemia.

A vida amarrada em nós de medo, incertezas, impotência e espírito de sobrevivência

O górdio não resistiu a um golpe certeiro de uma luminosa ideia.

Por que não começar um diário?

Um dia, alguém haveria de ler e entender.

A rotina de fazer tudo sempre igual não ajudava a resolução de começar logo.

A doença chegando cada vez mais perto, foi minando o que restava de ânimo.

Realidade devastada por notícias sempre piores que as esperadas.

O bom humor virando sorriso sem graça.

Gargalhadas nervosas.

O projeto ficou no título nunca publicado.

Diário do Medo.

Sem numeração, sequência, nem capítulos.

Dois  anos depois, ao visitar o que foi publicado, a constatação que mesmo sem o rótulo, o cotidiano ficou registrado.

No assunto único que nunca faltou.

No garimpo por notícias boas, desanimador.

No sol do meio dia que continuou a raiar mas não protegeu.

No vírus que não respeitou as estações do ano, sem saudades do aconchego dos dias frios do hemisfério norte.

Nos mares de águas mais salgadas que não saciaram a sede do invasor.

Nos remédios e poções que acalmaram o pavor, unguentos negados pela ciência burocrática.

Na réstia de esperança de uma  vacina precoce.

Numa nova peça de vestuário presente em todas as coleções, modelos e ondas.

Na distância que outros não guardavam.

Em todos os restaurantes de  única e conhecida mesa doméstica.

Nos drinks sem brindes.

Num corpo sem forma, sem academia, sem pilates, sem dieta.

Nas férias da balança.

Na barba sempre por fazer.

Nos cabelos dos tempos de noites de sábados.

Brancos.

Nos netos, de repente, crescidos.

Tudo que resta, são flashbacks de um ano passado no limbo,  em câmara lenta.

 

Retrato do Doutor Alphonse Leroy (1783) – Jacques-Louis Davi – Museu Fabre, Montpellier, França 


***

(Texto publicado em 18/04/2021, quando se pensava que a pandemia teria uma onda única, e estava por acabar)

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