3 de maio de 2024
Memória

O GALO CANTA

Igreja de Santo Antônio dos Militares – Natal (1776)


Quando
Hipócrates descreveu as crises de gota, não sabia suas causas mas disse  que os doentes apresentavam as dores antes  do primum galli cantum.

O mestre e depois de quatro séculos, o mestre dos mestres, sabiam que  o tronido despertador romperia o silêncio, anunciando o novo dia.

O galo ainda não havia  cantado e Pedro, por três vezes,  negara  conhecer seu guia espiritual.

Até hoje nenhum cientista respondeu porque cantam os galináceos.

A ciência multiplicou horizontes e conhecimentos mas ainda convive com muitos mistérios.

Os galos continuaram cantando e fazendo festa, desafiando o toque de recolher determinado pelos comitês científicos e mais altas autoridades sanitárias.

O médico de uma penitenciária com mais de 2000 apenados divulgou dados coletados em um ano, com os resultados das  medidas tomadas  para evitar uma tragédia anunciada, nos subterrâneos de outra maior.

Pessoas que conviviam em ambientes fechados, portadores de múltiplas comorbidades, vítimas mais prováveis entre todos  os grupos de risco de contaminação.

Enquanto a pandemia avançava, serviços médicos e hospitais já não tinham espaço para atender e os números dos mortos causavam terror, no seu campo de trabalho e posto de observação, não constatou nenhum óbito.

Não houve necessidade de uma só internação.

Seguindo raciocínio e método científico observacional, concluiu que entre as variáveis, uma era comum.

Todos que vinham fazendo uso regular de determinada medicação, com fins profiláticos das parasitoses comunitárias, repetiam a resistência  mostrada  em prévias viroses sazonais.

A proteção que poderia ajudar outros, foi duramente questionada, negada, por falta de comprovação e chancela dos doutores do saber,  denunciada como pajelança que dilapida o patrimônio público.

Denunciado, o facultativo respondeu a processo criminal.

A campanha contra o medicamento de baixo custo ganhou os mais nobres espaços da mídia e transformou uma droga lícita que havia salvado milhões de vidas miseráveis, tendo conferido aos seus descobridores, um Prêmio Nobel de Medicina, na mais apedrejada e escarrada Geni do país de muita saúva corruptora  e pouca saúde.

Não faltaram doutos sapientes que nunca trataram lombrigas nem chanha,  para alarmarem efeitos adversos catastróficos.

O outro lado da notícia não apurou quantas hepatites fulminantes vitimaram os desnutridos, diabéticos, hipertensos, aidéticos e tuberculosos internados no presídio.

Nem somou os alardeados inscritos nas filas para transplante de fígado.

Mesmo depois que a vacina chegou para todos, o galo continuou cantando toda madrugada, duas horas antes do sol nascer, avisando que a noite escura ainda não havia acabado.

O resto era Ciência.

 

Aldemir Martins (1922-2006)

(O texto publicado em 06/04/2021 sofreu atualização temporal)

 

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