7 de maio de 2024
Memória

PISO DE GRATIDÃO

Gato Azul III – Aldemir Martins (1922, Ceará/2006, São Paulo)


Trabalhadores da área da saúde nunca foram tão homenageados quanto nos tempos de chumbo da pandemia.

Com toda razão e méritos.

Agradecimentos aos que correram todos os riscos para enfrentar uma doença que transformava o cuidador, na próxima vítima.

O mundo legal nunca imitou a arte de curar.

Órgãos fiscalizadores, só consideram trabalho insalubre os executados em algumas poucas dependências dos hospitais, com os centros cirúrgicos, fora das listas.

As belas manifestações de apreço nas redes sociais recebiam sugestões alternativas:

Que tal parar de chamá-los de heróis e passar a pagá-los melhor?

Mas o Ministro Paulo Guedes já sinalizava que  tudo voltaria ao normal quando os hospitais infláveis,  de campanha, fossem desmontados:

Nossos heróis não são mercenários. Que história é essa de pedir aumento de salário porque um policial vai exercer sua função?

Ou porque um médico vai à rua exercer a sua função. Se ele trabalhar mais por causa do coronavírus, ótimo.

Ele recebe hora extra.

Mas dar medalhas antes da batalha?

As medalhas vêm depois da guerra”.

Nem a mudança de governo para um trabalhista/socialista/comunista trouxe as esperadas comendas, nem mudança de mentalidade,

A nova lei do piso salarial da enfermagem já está sendo cumprida com uma brutal redução dos postos de trabalho na rede privada e ameaças dos prefeitos de não haver recursos para seu pagamento.

No centro cirúrgico,  dos lugares mais  democráticos que podem existir, é diferente.

Lá, nem gato passa por lebre.

As vestes, iguais para todos, do professor-doutor-catedrático à turma da faxina, reflete-se no comportamento coletivo.

As conversas são descontraídas, na camaradagem,  mas algumas ultrapassam os limites  da informalidade.

Relacionamentos mais sérios, com papel passado ou não, começaram naqueles ambientes sempre de muita pressa, pressão e tensão.

A jovem instrumentadora participava pela primeira vez de um procedimento com o cirurgião que já deixara a  meia-idade pra trás.

Em qualquer tempo mais tranquilo da operação, depois do silêncio lancinante nos momentos cruciais, para relaxamento de todos, voltam as conversas.

Tímida, a estreante comenta, baixinho, que o doutor parece um gato.

Com a auto-estima lá pelas cumeeiras, o revelado felino solta a língua e passa, falando sempre baixo, a contar dos cuidados que tem com a dieta e das atividades físicas que pratica.

Já pensando em outras oportunidades.

Outros assuntos.

Outras horas.

Outros lugares.

A novata, percebendo as terceiras intenções, faz o experiente chefe da equipe cair das nuvens.

Quase tendo de gastar uma das sete vidas.

      O senhor fala  ronronando, como um gato.          Mal consigo entender o que está pedindo.

Gato Vermelho (2002) – AldemirMartins – Serigrafia


(O gato desta estória já entrou na tuba do Território Livre em 20/05/2020)

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