3 de maio de 2024
Memória

AUTOENTREVISTA

Che Guevara (1968) – Andy Warhol – Serigrafia


A doutrinação socialista pelos professores das escolas privadas – capitalistas vorazes na cobrança das mensalidades – é reclamação frequente.

Para esclarecer se é fenômeno moderno, este Território Livre localizou um sobrevivente da luta ideológica, testemunha de um dos períodos mais emblemáticos da participação política dos alunos e professores de tradicional educandário religioso de Natal..

Pacato cidadão, casado em primeiras e únicas núpcias, quatro filhos, quatro netos, médico jubilado, funcionário público aposentado, sobrevivente de um câncer de pele e outro de próstata, morador de um bairro de classe média alta da zona leste da capital potiguar, onde foi entrevistado.

A princípio, relutou em conversar quando soube que seria sobre coisas do passado.

Não vale a pena. São fatos para qualquer ministro do supremo decidir pelo esquecimento.

Diante da argumentação que sua lembranças poderiam aliviar as angústias de pais que não escondem a preocupação de estarem os filhos frequentando aulas com conteúdo ideológico de esquerda, concordou em narrar os ocorridos por volta de 1968, o mais violento dos anos de chumbo.

A política era assunto discutido em sala de aula?

A mesma Igreja que apoiara o golpe militar, além dos seguidores do movimento conservador Tradição, Família  e Propriedade, tinha também o lado que defendia ardentemente, o fim do regime de exceção.

E isso entrava clandestinamente no currículo escolar.

Quem liderava esta tendência?

No nordeste, Pernambuco irradiava influências.

Banidos da vida pública, Miguel Arraes de Alencar e Francisco Julião Arruda de Paula, eram idolatrados.

Dom Hélder Pessoa Câmara, defensor dos direitos humanos, pregava a Igreja voltada para os pobres e a não-violência.

Os religiosos daqui o tinham como modelo, e havia sintonia de pensamento.

Um dos seus auxiliares mais próximos, o Padre Henrique Pereira Neto que veio a ser torturado e morto por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas em 1969, foi frequentador assíduo do colégio, tendo passado lá, uma temporada, fugindo de ameaças.

Como era a participação dos alunos?

Com professores, claramente contrários ao regime militar.

Nas aulas de português, as sentenças a serem analisadas eram slogans contrarrevolucionários (contra a redentora) e a leitura de livros proibidos pelo arbítrio, estimulada.

A doutrinação era subliminar?

Não.

Tudo era falado às claras e encorajada a participação ativa.

Além dos mimiografados, eram comuns os jornais murais de conteúdo social e político.

Pregados nas paredes e até nos troncos das mangueiras, em folhas de cartolina, desenhos, palavras de ordem e recortes de jornais de esquerda.

A volta da democracia, o fim da Guerra do Vietnã e ofensas aos milicos, estavam entre os 10 mais explosivos, os trending topics da época.

Quem eram os líderes?

Na volta das férias, um colega da turma um ano na frente da minha, havia  deixado o colégio e não se sabia para onde teria sido transferido.

Os boatos que aderira à luta armada só foram confirmados com a notícia do noticiário da TV que um jovem terrorista teria resistido à prisão e sido fuzilado num banheiro da rodoviária Novo Rio.

O codinome divulgado, do colega José Silton Pinheiro, ex-presidente do Grêmio Estudantil Marcelino Champagnat.

Outros entraram em organizações clandestinas?

Daquela mesma turma, saiu o primeiro e único civil condenado à pena de morte no período republicano, com base na Lei de Segurança Nacional.

O  Juiz do Trabalho  Theodomiro Romeiro dos Santos,, falecido em maio deste ano, atuava em Salvador, no Partido Comunista Revolucionário Brasileiro.

Numa tentativa de fuga, foi acusado da morte de um sargento da aeronáutica.

E os professores?

Os antigos, com minguados salários, eram naturalmente revoltados.

Alguns,  estudantes universitários que traziam de suas faculdades, as hóstias para a comunhão nas mesmas ideias libertárias.

Lembro de um em particular.

O de Português.

O Procurador do Estado e escritor François Silvestre de Alencar.

O autor de ‘A Pátria não é Ninguém’  passou um tempo afastado enquanto  tirava uma cana.

Morador da Casa do Estudante, foi o orador na saudação a autoridades em visita às necessidades nunca atendidas.

A mulher do governador não gostou do discurso e sobrou pra quem levava fama de ‘subversivo’.

O influenciador-mor foi  um religioso cearense, Irmão Francisco.

Era o líder, admirado por todos.

Outro destes professores que a gente nunca esquece.

Você acha que os alunos de hoje estão sendo doutrinados e correm risco de se tornarem esquerdopatas?

Ninguém tira nem bota rebeldia em jovens.

Muitos neo-liberais, conservadores, eleitores do centrão, bolsonaristas, foram trotskistas na juventude.

Relaxem, senhores pais.

A boina de Guevara não cai bem em quem já passou dos 40.

O Homem no Controle do Universo – Diego Rivera (1886-1957) – Afresco no Rockfeller Center, Nova Iorque

 

(Este texto, publicado em 4/9/2020, foi atualizado e sofreu  algumas alterações na forma, sem comprometimento do conteúdo)

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