ABSTINÊNCIA DE AUTORIDADE
Pessoas em crise de identidade não usam máscaras.
Não perdem uma oportunidade de perguntar a desconhecidos, se sabem os nomes deles.
Os mais graduados, quando encontram alguém pra filmar o bafafá e um guardinha cumpridor dos deveres e educado, correm o risco de pagar multa de 380 mangos e apressar a aposentadoria de 40 paus.
Carteirada não é coisa do século XXI.
(Publicação original em 03/08/2019)
CRISE DE IDENTIDADE
A calçada da farmácia de Carluce, na Rua Grande, único estabelecimento que abria à noite, era onde os notáveis se reuniam.Ainda no tempo que não chegava sinal de TV, depois da janta, sempre havia quórum e nunca faltava assunto.
Os participantes eram autoridades, funcionários graduados e pessoas de bem (e posses).
De vez em quando, algum caixeiro-viajante trazendo as novidades do Recife.
O papo transcorria como de costume. Chega um bêbado contumaz, folclórico pela verve.
Tinha por costume, pedir algum trocado. Era atendido e pegava o beco.
Na sua estréia, recém-chegado à cidade, o novo juiz, ainda sem saber as regras do convívio, resolveu contrariar o bebum.
Fez a clássica pergunta: se o interlocutor alcoolizado sabia com quem estava falando.
O diarista não mentiu. Não tinha a menor ideia de quem era o novato. Nunca o tinha visto tão gordo. Nem tão careca.
O magistrado diz pausadamente o nome completo, precedido do intimidante Doutor.
O ébrio resolve manter o nível do diálogo e pede a confirmação do que acabara de ouvir.
-Quer dizer que tu é doutor?
O togado confirma com ênfase e diz ser ele sim , o Senhor Doutor Juiz de Direito da Comarca.
A partir daí foi um solilóquio etílico:
-Tu é doutor… né? …tu é doutor…
E a inesperada e desafiadora pergunta:
-Tu opera?
Não esperou nem a resposta que sabia negativa e concluiu:
-Então, tu é um bosta.
Daquela vez a carraspana foi curtida no xilindró.