3 de maio de 2024
Memória

BELAS, TERRÍVEIS, INESQUECÍVEIS

Foto: Francisco Diniz

O mundo dos cnidários é fascinante.

O deslumbramento começa pelos nomes dos seus habitantes.

Corais, água-vivas, hidras, medusas, anêmonas do mar, caravelas.

A Biologia considera, na escala evolutiva, os primeiros animais com uma cavidade digestiva. Característica que os fez conhecidos como celenterados, e alguns confundirem com celerados.

Exuberantes e ameaçadores, quais sicários à procura da próxima vítima, singram mares de águas tépidas e calmas, ao gosto dos ventos.

Vistas como chegam ao destino final, no porto das praias, já não causam nenhum temor.

A sina é secar ao sol e ter seus tentáculos rendidos pelas areias e cheias das marés.

A foto publicada pelo sobrinho fotógrafo, chama a atenção pela beleza plástica e evoca recordações da infância.

Traumáticas e doloridas.

No tempo em que o veraneio era em período integral e continuo, não durava menos de dois meses. Das vésperas do Natal à quarta-feira de cinzas.

Em verões de aventuras à luz da lua e das lâmpadas Aladin e Coleman, nos banhos de cuia à beira dos poços e tantas outras  aulas práticas da professora natureza.

A indumentária para os meninos, bastava o básico. Simples, como silvícolas que quase viravam.

Dois calções no revezamento seca e molha.

Camisas dispensadas que era preciso trocar a epiderme como a cobra, o couro.

Calçados esquecidos, menos pelos bichos tunga penetrans, depois retirados dos cantos de unha, por exímias cirurgiãs de forno e fogão.

Antes que o vestuário de nylon chegasse aos manguezais, não havia  ainda a tecnologia das redinhas protetoras dos possuídos pudendos.

A liberdade das partes pudibundas era o preço pago pelos perigos, o maior deles, o sorrateiro ataque dos raios cáusticos lançados de alguma nau desgarrada da frota de  caravelas, até a três metros de distância do alvo.

A  lembrança visual dolorosa é sentida como se  o dano causado na única parte do corpo onde a proteção é também a armadilha que mantém presos os diminutos fios venenosos, estivesse ocorrendo agora.

Os mais sortudos, atingidos nos outros membros contavam com tratamento imediato e acessível.

Algum amigo com a bexiga transformada em almotolia e o santo alívio do morno sedativo à base de ureia.

A dor forte, o inchaço e a ardência deixadas pela ação do veneno na pele só tinham mesmo um lenitivo eficaz.

Um unguento caseiro à base de araruta e a recomendação de andar com as pernas levemente abertas por três a quatro dias.

Como dói uma fotografia.

E a idade que ficou para trás.

Foto: Francisco Diniz

(Texto publicado em 30/08/2021)

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Francisco Diniz, o fotógrafo cujos trabalhos ilustram o texto que inspirou, é médico. Cirurgião.

Competente nos dois ofícios.

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