27 de abril de 2024
Memória

NO CANTO DOS INOCENTES

O bebê Marcelle Roulin (1888) – Vincent van Gogh – Galeria Nacional de Arte – Washington DC


De três não passam mais.

No planejamento familiar dos nubentes hodiernos, a contagem dos filhos termina no primeiro par.

Raríssimos são os que se arriscam nas tentativas de desempate, quando o casal almejado, vira parelha.

Por mais abordagem psicológica e preparo, a chegada do irmãozinho nunca vem sem despertar a ciumeira do reizinho do pedaço.

Que o fenômeno é mais observado nas cortes onde só varões assumem os tronos, dizem.

O anúncio da novidade, o crescimento na barriga, os pontapés sentidos.

Nada se compara com a chegada daquele embrulho que passa de mão em mão.

Com o cuidado que o atento observador não lembra ter sido merecedor.

Bem que já havia a desconfiança que estavam aprontando alguma.

Começaram a conversar muito sobre um certo alguém que iria ficar com tudo que já não usava mais.

Que teria que dividir  a casa, o quarto e os braços da mãe.

Os brinquedos que já enjoava e os que ainda viria a ganhar.

Estava explicado porque resolveram que passaria parte do tempo, separado, sem a atenção de sempre.

A creche fazia parte do plano urdido.

Quem já viu, terceirizar um filho?

Também dá pra notar que os avós, tão devotados e exclusivos, concordam com a traição.

Entram no jogo e não mudam de tática.

Imprevisíveis, as reações de quem se achou preterido dos direitos adquiridos.

Incrível, como dissimulados, argumentam ao explicar as reações e como querem solucionar o maior problema que já apareceu na curta e até então, maravilhosa vida.

Quando a mãe deixou os dois sozinhos, o escanteado resolveu cuidar do recém-nascido, como todos vinham fazendo.

Uma chuveirada de areia, com direito a esfoliação dérmica, foi explicada candidamente:

Você não disse que ele era meu? Estou brincando de dar banho.

Ao ser apanhado na saída do jardim da infância, o menor enjeitado foi logo perguntando à ré, acusada de abandono de vulnerável:

O menino já morreu?

De pouco adianta redobrar as atenções pra quem se sente e foi preterido.

Eles percebem.

E até em brincadeira de fazer desaparecer objetos, procuram um jeito de se livrar da concorrência.

Ao avô-ilusionista-prestidigitador, a inocente pergunta:

– Você sabe mágica pra desaparecer bebê chorão?

O enciumado não se sente ameaçado somente pelos seres de quatro patas que um dia haverão de aprender a andar sobre duas.

No campo adversário, na casa da outra, a avó ficou sabendo que a cadelinha, rainha do lar e do ninho vazio, despertava os instintos mais primitivos do pequeno buda.

O convite para cumplicidade em hediondo crime, nunca podia ter partido daquela vozinha sussurrada pelo fedelho de três anos incompletos:

– Vovó, vamos matar Kika?

Madame Roulin e seu bebê (1888) – Vincent van Gogh – MoMa, Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque


(Publicação original em 20/07/‘2020)

One thought on “NO CANTO DOS INOCENTES

  • Geraldo Batista de Araújo

    Gosto muito de ler logo cedo os escritos do . meu médico escritor. Ele tomou gosto pela escrita e está dando conta do recado.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *