8 de maio de 2024
Memória

OUTRO CACHORRO IMORTAL

Retrato de Alfred Bérard (1881) – Pierre-Auguste Renoir – Museu de Arte de Filadélfia, Pensilvânia, Estados Unidos


Depois de uma longa, bem sucedida  e lucrativa temporada, com o repertório exaurido, o circo precisava seguir viagem.

Bye, bye New Cross.

O roteiro já anunciava um novo e respeitável público.

Como o cantador Gonzaguinha, guardando as recordações das terras onde passava, andando pelos sertões e dos amigos que ia deixando.

Pela boa acolhida e a dispensa de taxas e emolumentos, muito antes  da Lei Rouanet, a excelentíssima senhora prefeita recebeu a visita de cortesia e despedida da família de acrobatas, músicos, palhaços, atores, dançarinos e bilheteiros do Grande Circo Copacabana.

Em agradecimento pela hospitalidade, um presente inusitado e inesperado, aceito sem muito entusiasmo, como mandava a etiqueta aprendida pela burgomestra,  na Escola Doméstica.

A lembrança, o cachorro mais feio que já foi visto nas ribeiras do Curimataú, era retinto.

Sem pelugem alguma, a não ser uns poucos fios curtos na cocuruta e na ponta do rabo fino.

De couro grosso, curtido ao sol.

Da artística família canina, dizia a crítica circense local, era o único sem dotes artísticos.

Reservado a papéis coadjuvantes, incapaz de pular por arcos em chamas e outras piruetas.

Em tempos de espetáculos politicamente incorretos, a cachorrada era chamada de africanos amestrados.

A origem ficou esta.

A ninguém foi dado o direito de escolher um nome de estimação.

A identidade estava no focinho e olhos tristes.

Chorão.

Virou cão de guarda e sombra da dona.

Sem lei modernosa, foi o primeiro da espécie a ter acesso livre ao prédio público mais imponente da cidade.

Sem crachá, foi assessor assíduo.

Como todo funcionário fantasma, não tinha birô mas o cantinho do gabinete estava conquistado.

Aos pés da chefa.

Manteve a mesma fidelidade na iniciativa privada.

Vigilante de loja.

Deitado, preguiçoso, na entrada, ao lado do capacho.

Nas horas vagas, solto e sem coleira que nunca usou,  vagabundava, virava latas e namorava.

Deixou numerosa descendência, dispensando exames de DNA.

Somente depois da sua morte, seus segredos foram se revelando.

O pedigree era mexicano.

De uma raça milenar, considerada sagrada pelos povos mexicas e maias.

Aos xoloitzcuintle são atribuídos poderes de trazer  boa sorte e prosperidade.

Sua fidelidade mais que canina, transcendia a vida terrena.

Quando os corpos morriam,  as almas tinham um longo caminho a percorrer no mundo subterrâneo, até chegar ao dos mortos, Mictlan.

Os defuntos não conseguiam fazer a última viagem sozinhos. Precisavam dos companheiros de todas as horas, incluídos nos sacrifícios.

Eram as almas dos xolos  que guiavam as dos donos através das veredas do além, até a apavorante travessia do rio da morte.

Ameaçada de extinção, a raça voltou a ser popular depois de representada pelo irresistível Dante, no filme dos Estúdios Disney, Viva – A Vida é uma Festa.

Quarenta anos depois, Chorão deixa o mundo dos mortos, para alguns instantes de lembranças.

E saudade.

***
(O texto publicado há pouco mais de dois anos, volta em homenagem a Pipoca, cadelinha que depois de encantar os netos, encantou-se na Fazenda Barriguda, enquanto via o mundo se mover, na rodovia RN 093)

 

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