30 de abril de 2024
Memória

QUINTANA SEMPRE

Quintana (2019) – Eduardo Kobra – Mural no Colégio Farroupilha, Bairro Três Figueiras, Porto Alegre


Sem musas, sem nunca ter casado, sem filhos, o maior poeta gaúcho não deixou de escrever sobre relacionamentos.

Falava das coisas simples.

Dizia que as leves são as únicas que o vento não pode levar.

Como um cheiro que o próprio vento tinha.

Não se conheceram mulheres a quem tenha dedicado versos. Mas deixou  dúvidas e enigmas a serem desvendados:

Senhora, eu vos amo tanto

Que até por vosso marido

Me dá um certo quebranto.

Preservava a amizade que via como o amor que nunca morre.

Mas era exigente com os amigos, que os queria discretos:

Não te abras com teu amigo

Que ele um outro amigo tem.

E o amigo do teu amigo

Possui amigos também…

Para os  descendentes que não teve, deixou uma coleção de livros infantis que têm acalentado os filhos e netos dos outros.

– Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem.

Vinte e nove anos depois da sua morte, o jornalista e poeta, continua sendo lembrado, reeditado e citado.

Referência de vida simples e rica. Para quem, apesar das dificuldades e de tudo que não viveu, vale a pena viver. Nem que seja para dizer que não vale a pena…

Não é difícil imaginar quantas outras observações seriam transformadas em poemas e frases imortais se o convívio pudesse ser possível com as crianças de hoje.

As do seu tempo, diferentes das do tempo da infância no Alegrete já estavam fadadas à independência precoce dos livros e obediências de outrora, por influência das revistas em quadrinhos.

As contemporâneas, que nem gibis curtem mais, hipnotizadas pelos desenhos animados, sites, streaming, weblogs videoblogs e outras ferramentas que a diferença de gerações não permite acompanhar, como seriam vistas pelo solitário das  pensões e hotéis de Porto Alegre?

E se netos  tivesse tido e estes pudessem mostrar situações impossíveis de serem criadas pela imaginação mais fértil.

Como da reunião de pais e mestres na escola do pequeno vivente de quatro anos.

A maioria (ruidosa) de mães discutia com professores, todas mulheres, quando o ambiente de predomínio feminino foi maculado pela abertura abrupta e sem batidinha na porta, de um piá, aluno do quarto estágio  do curso pré-primário que foi logo anunciando, em voz alta  e quase grossa, o objetivo daquela invasão e a convicção como a  fazia.

Está chovendo e ninguém vai me tirar daqui de dentro.

Bastou o olhar fulminante da genitora para que o destemido invasor saísse com o rabo entre as perninhas, antes mesmo de ouvir a ordem unida.

Já pra fora, seu cabra.

                                    ***

A GENTE NÃO SABIA

A gente ainda não sabia que a Terra era redonda.

E pensava-se que nalgum lugar, muito longe,

Deveria haver num velho poste uma tabuleta qualquer

Uma tabuleta meio torta.

E onde se lia, em letras rústicas: FIM DO MUNDO.

Ah! Depois nos ensinaram que o mundo não tem fim

E não havia remédio senão irmos andando às tontas

Como formigas na casca de uma laranja.

Como era possível, como era possível, meu Deus,

Viver naquela confusão?

Foi por isso que estabelecemos uma porção de fins de mundo

   -Mário Quintana (1906-1994)

Let me be myself/ Deixe-me ser eu mesma/Anne Frank – (2016), Eduardo Kobra, Amsterdã, Holanda


(Primeira publicação  do texto em 
11/03/2020)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *