1 de maio de 2024
Memória

TSUNAMI NO SERTÃO

Fuji Vermelho (1832) – Katsushika Hokusai -Museu de Belas Artes, Boston


Os devotos de
São Glauber Rocha haviam decifrado o divino e maravilhoso sinal recebido.

Já não escondiam que o fim da espera estava próximo.

Nostradamus havia descrito as chegadas da Pandemia e do Anticristo.

As duas desgraças, com os dias contados em vacinas e eleições não auditáveis, realinhavam  os astros anunciando a profecia do santo visionário de Vitória da Conquista.

A fé recebeu a força que faltava, das ciências ocultas e da vulcanologia, e poucos ainda duvidavam que chegara a hora e a vez de o sertão virar mar.

Era questão de dias.

As caldeiras da Cumbre Vieja nas franjas da ilha de Palma de Santa Cruz de Tenerife estavam no aquecimento.

Depois que o velho cume tombasse, como uma onda havaiana, o mar iria invadir as  terras do sertão e do cerrado.

Só quem habitava o planalto central poderia contar a estória.

Pelos presságios registrados, a nação a ser fundada pelos que restassem, não teria futuro auspicioso.

Triste Bahia, quão semelhante Brasil.

Há duas décadas, quando caminhava pelas areias alvas das praias onde acaba o mar dos macacos, cercanias  da cidade que já foi de Filipe e de Frederik, um sertanejo, trocando o ardume da sua terra seca  pelo calor do areal esturricado e salgado, sentiu estranha vibração .

Naquele mormaço, um pressentimento mudou a vida de quem estava ali só para um punhado de dias de doce descanso.

Foi uma visagem tão clara, que pareceu real.

No sonho de olhos abertos,  a parede d’água, coisa maior que cinco braças, varria tudo.                    Todas as casas e até prédios de poucos pavimentos, ficavam embaixo d’água.

Ainda não refeito do transe, correu pra reunir mulher e filhas.                                                              No apartamento de primeiro andar que havia comprado por insistência delas, contou a aparição.

Comparou a quimera do outro mundo com uma tromba d’água capaz de  arrombar um  açude do tamanho do Barra, que segura as águas do Velho Chico na chegada  mansa em Sertânia.

Ainda passou uma quinzena de sobressaltos e sono maneiro.

Nem o barulho ritmado das marés enchentes e vazantes, trazia calma.

Passados os anos, a patroa, as herdeiras e candidatos a genros, continuavam a chegar como aves de arribação, a tempo de pular as sete ondas e ofertar prendas à Rainha Iemanjá.

Por precaução e certo pavor, o chefe do clã nômade, nunca mais voltou a sentir o ar salitroso na vizinha Paraíba.

Aos amigos de longe, mandava lembranças e notícias de progressos nos negócios.

Aos de perto, dava conselhos para ficarem longe do perigo

Recomendações desprezadas pela família, hoje separada por mais de 300 km e por um casamento desfeito e multiplicado por dois.

O poder destruidor de um tsunami passa  mais rápido  do que se possa imaginar.

Como um verão em Cabedelo.

 

Praias de Tago Bay, Ejiri em Tokaido (1832) -Katsushika Hokusai – Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque

(Texto original publicado há dois anos, dias antes da erupção do vulcão  Cumbre Vieja, nas Ilhas Canárias, Espanha )

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