OS SAPATOS DA PANDEMIA
Mineiro de Belo Horizonte, Fernando Sabino também foi um inconfidente, como seus revolucionários conterrâneos de Mariana e Sabará.
Se não fossem as confissões do jornalista, contista e romancista, as manhas de escritores famosos nunca chegariam ao conhecimento de aprendizes e cronistas menores.
Requentar um texto já meio esquecido do público leitor e republicá-lo como inédito, quem nunca fez?
É de bom alvitre, uma remoçada no escrito com a inserção de algum fato de ocorrência recente.
Entre amigos dedicados ao mesmo mister de escrever por encomenda e com deadlines a obedecer, uma pequena ajuda mútua é, às vezes, necessária.
Contou o autor de uma desastrada biografia de Zélia Cardoso de Melo, que um dia teve a surpresa de ouvir do maior de todos os cronistas, Rubem Braga, uma inocente e inesperada pergunta:
– Será que você teria aí, uma crônica pequenininha para me emprestar?
A peça refugada, ainda inconclusa, contando a estória de um menino que pediu um dinheiro para comprar comida, do título original, O preço da Sopa, virou somente A sopa.
A obrigação contratual com o jornal cumprida, a devolução do favor, aconteceu anos depois, nas mesmas condições, em dia de pouca inspiração.
A crônica emprestada voltou e depois de algumas modificações foi rebatizada e publicada novamente pelo autor original. Virou ameaça: Esta Sopa Vai Acabar.
O Estranho Ofício de Escrever, o título da crônica indiscreta, ainda faz outra revelação.
Do colega Carlos Castelo Branco, colunista político, recebeu a sugestão de parar um pouco:
– Esta sua última crônica estava de amargar.
A crítica rendeu dois anos sabáticos.
No retorno, a mesma crônica repaginada recebeu do mesmo crítico, efusivos elogios, como das “melhores coisas que você já escreveu.”
Quando foi revelado o auto-plágio, o amigo sincero não se abalou:
– Agora achei boa. Ou a crônica melhorou, ou é eu que piorei.
À procura de assunto de interesse, um gancho sempre pode ser encontrado para servir de armador da rede que balança as ideias, no embalo das lembranças.
A foto do armário de calçados das vítimas da pandemia, publicada na primeira página da Folha de São Paulo e que rendeu lancinante crônica de Vicente Serejo, trouxe à memória, outros sapatos abandonados em distante tragédia.
O viajante madrugador tem o hábito de percorrer as cidades antes que os outros turistas, e seus guias, acordem e superlotem as ruas.
Em Budapeste, quase tropeçou em sapatos de ferro fundido, fincados na calçada, à beira do Danúbio e a poucos passos do majestoso edifício do parlamento húngaro.
A instalação que virou atração turística, data de 2005, é obra do escultor Gyula Pauer.
Está ali para relembrar as atrocidades do Holocausto praticadas, na segunda grande guerra, pelos milicianos do Partido da Cruz Flechada, de caráter fascista, antissemita.
A amarga lembrança dos que eram fuzilados e depois, jogados ao rio, deixando para trás o que tinham de mais valor, é agora escultura reproduzida em todo lugar.
Os Sapatos de Budapeste são os sapatos dos que partiram na grande peste do Século XXI.
(Texto publicado por ocasião do primeiro aniversário do início da Pandemia, em 14/01/2021)