1 de maio de 2024
Memória

UM DEDO NA MEMÓRIA DO VICE

Contra-almirante Sir Horatio Nelson (1799) – Lemuel Francis Abbot – Museu Marítimo Nacional, Greenwich, Londres, Inglaterra


Tudo seria muito diferente, não fossem as circunstâncias.

Os poderosos custam a entender isso.

Só percebem quando apeados, voltam à  planície, esquecidos que o caminho não é como visto lá  de cima.

Os novos amigos, os velhos colegas do grupo escolar, os soldados das primeiras horas, os paus para todas as outras, desaparecem. Não são mais úteis para quem não é mais.

Na política, sempre  foi assim.

Nos anos 70, o acirramento das relações entre Estados Unidos e União Soviética só foi abrandado com um toque francês. Pelo menos na palavra-síntese das  intenções, negociações e ações que afastaram o mundo de outra guerra mundial.

Détente.

Abaixo do equador, sem um Gorbatchov  (nem ao menos um Reagan) tínhamos Geisel.

Tão carrancudo, mas muito mais arejado que seus antecessores, sentiu e assimilou os ventos internacionais.

Lenta e gradualmente, preparou a volta dos militares aos quartéis, de onde só vieram a sair de novo, mais de 30 anos depois, sob comando de um reles capitão da reserva,  com menos de dez anos de caserna.

Mas esta é outra história (ou será estória?) a ser contada pelas interceptações e vazamentos  de mensagens criptografadas em  aplicativos de smartphones.

Traduzida, a palavra-chave logo foi incorporada ao linguajar de  scholars, políticos, jornalistas e pinguços de botequim.

Distensão.

Como tudo que surfa na crista da onda, a atmosfera de liberdade era sentida do Leblon a Belfort Roxo. Das Rocas às Quintas.

Até mesmo no atendimento da clínica de luxo preferida pelos chics e poderosos da segunda capital federal.

Ex-vice-presidente da República, o almirante de pijama que já começava a  trocar a Rádio Globo pela Tupi, é internado na urgência e precisa de uma sonda para alívio da retenção urinária.

Material pronto, o plantonista calça as luvas, mas antes de pegar no, digamos assim, instrumento, é interrompido pelo ajudante de ordens que se apresenta como tenente-médico.

Ordenando que apenas o professor-doutor poderia fazer o procedimento.

Ainda não tinha caído a ficha do ordenança, mas naqueles novos tempos já ouviam-se pela ruas, os estertores da ditadura. E vice era vice. Quanto mais, um ex.

O que explica a contraordem do comandante em chefe da equipe médica.

Sem tempo nem paciência para certas exigências, e a agenda do consultório cheia de encaixes, a exvice-bexiga prestes a explodir teria de ser esvaziada pelo  jeune docteur.

Que aproveitou a ocasião, e pra não deixar o serviço pela metade, foi fundo no exame da próstata da ex-sub-autoridade.

 

Capitão Robert Calder (1790) – Lemuel Francis Abbot – Galeria Nacional de Arte, Washington DC, Estados Unidos

 

(Este texto contém episódio já  relatado em 25/06/2019)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *