26 de abril de 2024
NotaOpinião

Um rádio de pilha ligava o Governo à Revolução

Naquele 31 de março de 1964 os jornais de Natal ainda eram servidos de noticiário nacional por um fraquíssimo serviço de telegrafia, de uma ou duas agências de notícia, ambas de confiabilidade zero. Para encher os espaços numa edição de apenas seis páginas (quatro simultâneas, o máximo de capacidade da impressora plana, como a da Tribuna do Norte, e um “macarrão” só de duas páginas, frente e verso), diagramadas logo cedo, ainda de tarde. O “macarrão” recebendo as com colunas locais, artigos de colaboradores e os pequenos anúncios, chamados de “Oportunidades”.

Relembrar aquele 31 de março não pode ser confundido com uma contestação a decisão do presidente Lula de não se lembrar o fato histórico. Como se ele fosse o dono da história desse país. (E não é.) Mas ofereço aqui minha tentativa de mostrar como se fazia jornal naqueles tempos.

Até poucos meses antes, a Tribuna tinha todas as páginas diagramadas na tarde, emendado com o “macarrão”, contando com as duas agências de notícias mais eficientes, a “Tesoura press” e a “Gilete press”. Cópias dos jornais do dia do Rio de Janeiro e São Paulo que chegavam no começo da tarde no avião da carreira garantiam o bom funcionamento do esquema clandestino de cópia de matéria publicada. O material ilustrado era feito usando o “flã”.

Flã é um cartão especial, semelhante um papelão grosso, composto por folhas de papel de seda e de papel mata-borrão, intercaladas, próprio para moldar matrizes de estereotipia. Comprimindo-se fortemente o flã, em uma prensa de matrizes ou numa calandra, contra a fôrma de composição tipográfica obtém-se um baixo-relevo que permitia a penetração do chumbo líquido para a formação de estéreo.

Com as mudanças da Tribuna (adoção de pauta para os repórteres, “lead” abrindo os textos, copy desk e outras modernidades) quando Natal já tinha um curso de Jornalismo (o segundo do Brasil). Ai a figura do repórter à cata de notícias ganhou importância. Os da nova geração da Tribuna, se reuniam na redação, na boca da noite, para ver o fechamento das páginas (com as suas matérias) e quase todo dia terminar numa cervejada na Peixada Potengí, do outro lado da av. Tavares de Lira onde ficava a redação do jornal (na antiga “Casa Olinda”), que virou “uma casa de doidos”, cheia de gritos, quando a Ribeira boêmia acordava para a batalha da noite.

DIA DA REVOLUÇÃO

Aquela terça feira não teve nada de diferente. Na Tribuna ninguém suspeitava que revolução e contra-revolução estavam acontecendo naquele dia. Depois do comício dos sargentos realizado pelo presidente João Goulart, na noite anterior, ter dado gás a crise militar no Brasil, de há muito desenhada. Walter Gomes, editor-chefe da Tribuna do Norte, havia chegado há poucos dias, do Rio de Janeiro, para comandar a “Nova Tribuna”, e pretensiosamente tirar o jornalismo potiguar do “marasmo”.

O seu entusiasmo fazia que a redação do matutino estivesse recebendo mais da metade dos seus repórteres toda noite, mesmo eles já tendo cumprido as suas tarefas. Ali se aprendia tudo: a titular as matérias (com um número igual de letras na linha de cima e na de baixo) e ouvir quem eram os autores das melhores reportagens ou notícias. E das piores também.

Quando o Carro nº 1, do Governador do Estado, chegou, não causou surpresa. Era usado muitas vezes para levar matérias de autoria do próprio governador Aluízio Alves, ou do seu irmão, Agnelo, o Chefe da Casa Civil, responsável pela coluna venenosa do jornal. Naquela noite não fora deixar, mas buscar “um repórter” que o Governador convocou para acompanhar de sua casa o Movimento que estava começando em Minas Gerais com o Exército revoltado para depor o Presidente da República.

ESCOLHIDO, EU

O escolhido fui eu: – Vá para a casa do Governador e só venha de lá quando souber se Jango já foi deposto ou se começou a prisão dos “reaças”. Só vamos fechar a primeira página depois de meia-noite. – Gritou Walter Gomes.

A casa do Governador era uma das últimas da Hermes da Fonseca (nº 1009), lá prás bandas do Aéro Clube. De estilo hispano-americano, construída por Silvio Pedroza para sua morada, ele foi o primeiro Governador a habitá-la.

A porta do escritório, na extrema esquerda do belo edifício, estava aberta para permitir Aluízio a circular livremente, entre um grupo e outro de secretários, políticos, militares (general Ulises e coronel Silvio, em alta) e amigos, sem se separar um segundo do receptor “Transglobe de oito faixas, que permitia ouvir a rádio Itatiaia de Belo Horizonte, com Magalhães Pinto, e as do Rio de Janeiro, cada uma com as notícias de um dos grupos que, naquelas alturas, se digladiavam.

HORA DA DECEPÇÃO

Sessenta anos depois daquela noite iniciada com o repórter correndo na certeza que traria a grande reportagem do dia, ficaram buracos na história, uma vez que o dono do jornal (e governador do Estado) tinha notícias as que ouvia no rádio de pilha, e todas as tentativas de trazê-las para cá não existiram, ou se tornaram indesejadas para o dono do jornal, que havia convocado o repórter da Tribuna, para ser uma testemunha silenciosa, por 60 anos.

Quando retornei ao jornal, não tinha mais ninguém. Com indícios de que o jornal não circularia naquele primeiro de abril. Nossa expectativa de conseguir uma entrevista exclusiva com o governador Magalhães Pinto, o “líder civil da Revolução”, não se consumou. Magalhães era da UDN, correligionário de Aluízio, e seu compadre. O pior foi não ter mais ninguém na redação para comentar a “anti-aventura” que eu tinha vivido na Casa do Governador, assim como da edição que seria colocada nas ruas.

Não lembro da tal edição, se chegou às bancas e aos jornaleiros (tiragem de meros 700 exemplares). Um mistério que perdura mesmo depois que o novo regime militar foi implantado e uma palavrinha mal interpretada poderia custar muito caro ao dono do jornal que era, acima de tudo um político, tentando escapar. O que conseguiu por alguns anos a mais.

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