CARROSSEL HOLANDÊS
A boa morte já está sendo discutida e praticada mas ninguém ousa ultrapassar os limites do tabu.
E pouco se fala nela.
As próprias entidades médicas tratam do assunto, permitem e até participam de elaborações de protocolos e manuais de condutas, sem nomeá-la.
A pandemia entre todas as mudanças que já provocou e haverá ainda de trazer, obriga que o assunto guardado debaixo de montanhas de pedras que ao longo da história têm sido colocados sobre ele, apareça entre os escombros do terremoto.
O que explica que um país riquíssimo, com população uniforme e educada, com renda e indicadores de desenvolvimento invejáveis, assistência médica universal de excelente qualidade, território pequeno, tenha um desempenho pelo menos dez vezes pior que o Brasil.
É este o comparativo percentual de óbitos pela Covid-19, na Holanda.
Este fato não atrai muita atenção talvez porque sua sociedade aceite com naturalidade o que em outras culturas é temática proibida.
A única certeza em nossas vidas, fica sempre para se pensar depois.
E de falar, nem pensar.
Ao lado da vizinha Bélgica, de Luxemburgo, Canadá e Colômbia, os Países Baixos são dos poucos em todo o mundo que têm leis que regem os últimos dias e desejos dos seus cidadãos.
As escolhas que as equipes médicas têm feito onde os recursos da assistência entram em colapso, terão consequências depois que a pandemia for controlada.
Onde a destruição é maior, o abrandamento das medidas restritivas ao funcionamento normal em sociedade é motivado por um pensamento não verbalizado.
A ocorrência de uma seleção.
Aceitada. Consentida. Conformada.
Está bem estabelecido quem são as vítimas preferenciais.
A mais perversa doença de todos os séculos é também iníqua.
Desigual e seletiva.
90% dos atingidos fatalmente, são idosos doentes.
Entre a minoria, dos mais jovens, quando acometidos, resistem melhor e já se questiona se os que não o fazem, têm alterações do sistema imunológico ainda não detectadas.
A aceitação da finitude é muito mais natural onde é comum uma pessoa, em qualquer idade, por ameaça de mal incurável ou pela convicção de já ter vivido o bastante, reunir as pessoas mais chegadas, anunciar uma longa viagem, fazer as despedidas e partir.
Há dois anos um holandês ao repetir uma cerimônia do cotidiano, reacendeu a discussão com sua estória que rodou o mundo.
Sem nenhuma doença grave nem diagnóstico sombrio, em perfeita lucidez, reuniu a família, pais, irmãos, primos, o melhor amigo e um pastor.
Depois de jantarem os pratos e o vinho preferidos e de uma oração, um médico injetou uma substância letal na veia do anfitrião.
Em menos de um minuto, ele adormeceu e parou de respirar.
Sem sofrimento, sem dor.
Aos 41 anos, divorciado e com dois filhos pequenos, depois de várias internações em clínicas de desintoxicação, sem conseguir controlar a dependência ao álcool, ele e seu médico chegaram à conclusão que aquele padecimento era insuportável.
Mais uma pergunta que nos deixa o coronavírus:
Por que não se fala sobre a hora d’Ela?
E por que não antecipá-la, quando inevitável ou desejada?