30 de abril de 2024
Memória

AOS NETOS, OS SAPATOS

O Sapateiro de Brodowski – Cândido Portinari (1941)  – Coleção Castro Mauá, Rio de Janeiro


Difícil a compreensão
  pelos filhos, imagine netos.

Foi preciso uma ordem mundial para recolhimento e imersão em pensamentos e memórias. E tempo de sobra para dar, emprestar e deixar de herança.

Tudo começa com  a aceitação da nova classificação etária que já devidamente registrada há quase uma década, só vinha servindo de bônus nos ingressos de cinema a preço dos tempos de colégio e estacionamentos reservados, até virar o ativo prime mais valorizado da bolsa da vacinação.

Era preciso também, um tanto de resignação.

Obrigados ao isolamento sócio-familiar,  ameaçados de serem mandados para o altar dos sacrifícios eugênicos, era hora de organizar, com esperança,  o temário para futuras revisitas ao passado.

Explicar para os mais jovens, o que havia mudado em trinta anos,  teve suas dificuldades.

Diferença de 60, só mesmo repetindo e repetindo as mesmas estórias.  Repetindo, ao ponto de nem mais serem escutadas. Repetindo o risco agravado de ganhar pré-diagnóstico sombrio, não traduzido  da Deutsche Sprache.

Menos pelo tema recorrente, mais por falta de referências para o entendimento, o diálogo não destravava.

Uma estória singela podia acabar  proibida  para ser contada a menores de 18 anos.

Como falar da amizade de menino com o filho do sapateiro Loyola?

O tema já obrigava uma primeira digressão.

Não era sobre a peça de mobiliário para guardar chinelas japonesas, havaianas e tantas outras dupés.

Tratava-se de profissão reconhecida pelo Ministério do Trabalho, exercida por trabalhadores proletários, simpatizantes dos regimes políticos socialistas.

Isso mesmo.

Bando de comunistas ateus. Gente que não perdia procissão nem novena da padroeira, de olho gordo nas posses dos usurpadores das riquezas populares.

Simpáticos, conversadores, fabricavam em suas oficinas, cubículos fedorentos a chulé e couro mal curtido mas que também cheirava  à cola que virou droga, sapatos.

Para homem, mulher, menino e todo devoto de São Severino.

Parecidos com esses sapatênis que se compra na netshoes.

Feitos sob medida, a partir de formas personalizadas, com direito a escolha de pedaços de material quase monocromático e sola ao gosto do freguês.

Só tergiversando ainda mais para o entendimento.

Quando caíram no gosto,  os vulcabrás e as botinas sete léguas, a profissão sofreu um downsizing. E se reinventou.

Os artesãos tiveram de se especializar em um segmento da linha de produção.

Recall, na reposição de peças danificadas.

Perderam toda criatividade. O design e a moda passaram  a ser ditados em terras de França, Milão e Franca.

Sobravam os consertos e remendos. E as meia-solas.

Os calçados, mormente os  dos garotos travessos, sofriam desgastes tanto no rosto, a face visível, como na sola, o contato com a Pacha Mama.

Consertos incluíam remendos com manchões, retalhos colados por dentro e alguma sutura que depois podia ser disfarçada com fenômeno e graxa.

O ronaldinho filho de Lula era um líquido espesso, parecido com esses lustra-calçados encontrados nos supermercados, na prateleira das esponjas embebidas de silicone.

Os engraxates pincelavam com o produto de secagem rápida. Daí a chamativa, surpreendente e excepcional marca que virou nome, como se lâmina de barbear fosse:

Fenômeno.

No ritmo frenético da flanela, os pisantes eram tão polidos que  na falta de um espelho menos cego, dava até para, com eles, se pentear.

Esperava-se, quando  a vacina garantisse a imunidade e o medo de matar os mais velhos passasse, os netos  voltariam ao aconchego para ouvir esta e muitas outras estórias.

Repetidas.

Três Pares de Sapatos – Vincent Van Gogh (1886) – Museus de Arte de Harvard, EUA


(O texto publicado, há três anos, depois de uma meia-sola, voltou no livro Aprendiz de Avô, e  mostra que o ‘novo normal’ foi mais um sonho de pandemia)

 

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